Nos anos 60 a francesa Françoise Dolto
(1908-1988) revolucionou a psicanálise da infância com uma ideia tão
simples quanto eficaz: devemos contar a verdade para as crianças. Depois
de anos experimentando efeitos deletérios de mentiras, ocultações e
demais práticas adultas de negação da verdade, Dolto percebeu como
grande parte do sofrimento experimentado por alguém decorre da
impossibilidade de nomeá- lo. Tese complementar: a criança sempre sabe.
Aquele que atendeu famílias corroídas pelo segredo, pessoas atormentadas
por sua orientação sexual, crianças de quem se esconde uma adoção –
destinos cercados por fantasias inadmitidas – sabe o peso que se acumula
na verdade que não se diz. E esse peso é ainda maior quando o tempo
coagula a verdade atribuindo a ela valor e potência que não se dilui,
nem se troca, nem se desloca – sua lei maior, que é a do reconhecimento
compartilhado. O direito à verdade torna-se um paradoxo quando nos faz
supor a existência daquele que seria seu representante fiel e executor.
São os pais diante dos filhos, os amantes e os amigos entre si, as
testemunhas diante do ato, as instituições por todos nós, a transmissão
da cultura em seu limite. Nada mais perigoso do que alguém que nesta
tarefa quer nomear positivamente toda a verdade. Ou seja, ao direito de
verdade corresponde um tipo de dever que poderíamos chamar de dever
contingente. O dever de dizer no tempo certo, para aquele a quem esta
verdade concerne, seguindo a prudência de que toda a verdade não pode
ser dita, como argumentava Lacan, porque isso é impossível, faltam as
palavras.
É preciso coragem para dizer esta verdade, ainda que
não toda. Depois de décadas de desconstrução e de relativismo
multiculturalista em teoria social parece cada vez mais claro que a
verdade é uma categoria incontornável da vida ética e desejante.
Contudo, ela deve ser abordada pelas vias do negativo. Posso não saber o
que é a verdade em todos os casos, seu código universal ou a língua
soberana na qual ela está escrita, mas sei reconhecer o mal-estar
naquele silêncio, naquele capítulo em branco de minha história, naquela
palavra esquecida, naquele gesto que não veio. Esse mal- -estar precisa
de um nome para se tornar sofrimento e como tal ser tratado, reconhecido
e recomposto. Um grão de verdade que se dispersará em novos saberes e
diferentes narrativas. Por isso quando se argumenta que a Comissão da
Verdade, recentemente instituída parainvestigar violações ocorridas no
período militar, não funcionará porque não tem poderes para prender e
processar os culpados, percebe-se esta lógica que pensa que a verdade
sem força de lei é impotente e que reduz o direito ao código dos deveres
obrigatórios. A justiça não é o direito porque este exclui os deveres
contingentes.
É este dever contingente que está em jogo quando um
pai recebe ordem judicial para pagar determinada quantia como reparação
por não ter “reconhecido afetivamente” sua filha, ou quando se estipula
que a prole tem uma espécie de direito natural ao afeto de seus pais.
Mais além das obrigações de segurança e dos encargos com a manutenção e
administração da vida, fica claro que há aqui uma patologia da verdade.
Nada mais certo para provocar o ódio do que o imperativo universal e
obrigatório para amar. Além de contraproducente, nos parece insensato
que a lei, no sentido do direito, obrigue alguém a amar. E nos soa
irrisório que codifiquemos o amor em uma série de comportamentos
procedimentais. Portanto, não conseguimos estabelecer de forma
necessária e positiva o que vem a ser o direito ao afeto. Quando o
fazemos geralmente temos uma patologia incipiente ou em progresso. Mas
isso não quer dizer que não seja possível reconhecer, sem dúvida ou
hesitação, quando estamos diante de uma transgressão, seja em relação ao
dever de verdade ou de direito ao afeto. E estes não se reparam apenas
juridicamente pela coerção ou prescrição, mas por meio de palavras e
atos de reconhecimento. |
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