quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

A pedra da exclusão


O crack provoca a liberação de grandes quantidades de dopamina no cérebro, o que causa efeitos mais intensos que a cocaína
 

Fernanda Ribeiro
 


Christy Thompson/Shutterstock

  Hoje deparei com algo novo. Na avenida Tigertale, em Miami, há uma garagem onde uns sujeitos com alguns trocados no bolso estão experimentando um tipo diferente de ‘viagem’. Estão fumando cocaína. Chamam essa versão de ‘base’. Tenho de perguntar ao traficante o que é isso”, anotou o sociólogo americano James Inciardi, ex-diretor do Centro de Estudos em Álcool e Drogas da Universidade de Delaware, sobre uma pesquisa de campo em 1973. Ele menciona um dos produtos feitos do extrato da planta Erythroxylon coca, que menos de dez anos depois seria batizado por usuários e meios de comunicação de “crack” – uma mistura caseira de pasta básica de cocaína, obtida pela maceração ou pulverização das folhas de coca com solvente (como querosene, parafina e álcool), ácido sulfúrico e bicarbonato de sódio. O nome da droga faz referência aos locais onde era comercializada e fumada: casas abandonadas (crack houses) de bairros pobres de Miami, Los Angeles e Nova York, onde usuários se reuniam em grupo para fumar a droga, vendida em “pedras”, em cachimbos improvisados com materiais como latas e copos de plástico. O fogo fazia os cristais estralar, produzindo o som descrito como cracking.

Quando inalada, essa mistura de cocaína penetra na corrente sanguínea através dos pulmões e é rapidamente metabolizada, chegando ao cérebro em menos de 20 segundos. A droga estimula a liberação de grandes quantidades do neurotransmissor dopamina, associado à sensação de prazer e de motivação. Esse componente químico age na fenda sináptica, o espaço entre os neurônios, para levar essa informação de uma célula neural a outra se ligando a receptores nas extremidades dos neurônios pós-sinápticos, isto é, aqueles que recebem o estímulo. O resultado é a sensação de bem-estar. Normalmente, a dopamina que sobra na sinapse é reabsorvida pela membrana dos neurônios pré-sinápticos e a sensação é regulada de forma natural. As substâncias presentes no crack agem diretamente sobre esses receptores, bloqueando-os temporariamente. Assim, a dopamina permanece na fenda sináptica, o que aumenta e prolonga o prazer. Por isso, os efeitos mais característicos da droga são euforia e percepção de que se tem confiança e poder – semelhantes aos da cocaína em pó, mas pelo menos dez vezes mais intensos –, além de constrição das artérias cerebrais, o que aumenta o risco de desenvolver doenças cardiovasculares.

O uso contínuo leva à diminuição progressiva da dopamina na sinapse, o que pode causar ansiedade, irritabilidade, sintomas depressivos e desejo de consumir a droga novamente. A absorção da substância pelo organismo vai se alterando, e ele se “habitua” a ela, dando origem à tolerância, fenômeno toxicológico que induz o dependente a aumentar a quantidade de droga para atingir o mesmo efeito inicial ou a buscar outros tipos de substância, como maconha, nicotina e principalmente álcool, para atenuar a “fissura” e os efeitos indesejáveis do consumo.

FATORES DE RISCO

“Basta experimentar uma única vez para ficar preso ao vício. Ele deixa as pessoas agressivas, causa depressão, perda da capacidade de raciocínio e leva ao crime”, diz o cartaz de uma campanha veiculada pelo governo do Distrito Federal, no qual a palavra “crack” aparece entre duas algemas. Especialistas, no entanto, discordam das abordagens que invariavelmente vinculam drogas à dependência e à criminalidade. “Não é só a droga que causa dependência. O processo é mais complexo, pois depende  de como cada pessoa reage a ela. Isso envolve mais de um determinante, causas conjuntas, como propensão genética, facilidade de acesso à substância, frequência de uso, presença anterior de transtornos mentais, familiares, entre outros aspectos”, diz a psiquiatra Ana Cecília Marques, da Associação Brasileira do Estudo de Álcool e Drogas (Abead).

Em outras palavras, desemprego e situação de rua podem ser considerados fatores que aumentam a vulnerabilidade, pois um dos efeitos do crack é a redução das sensações de fome e sono. Além disso, ele é mais acessível que os opioides e a cocaína em pó, por exemplo. O preço de uma pedra pode variar entre R$ 5 e R$ 10, enquanto um papelote de cocaína custa pelo menos R$ 20. O senso comum também acredita que a miséria é consequência da adição – sendo o inverso mais provável. “Dos usuários de crack, cerca de 80% são recreacionais: pessoas que têm família, trabalham e são produtivas, o que também não significa que o risco não é alto”, diz o psiquiatra Dartiu Xavier, coordenador do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “A ideia de que uma única dose é suficiente para causar dependência não se aplica a nenhuma droga. A noção é distorcida e pode ter resultado contrário ao desejado, principalmente entre os mais jovens, que podem experimentar o crack e, diante dos efeitos, desacreditarem as campanhas e achar que as consequências relatadas não são reais”, diz Ana Cecília.

Além disso, a relação entre consumo de cocaína e comportamentos impulsivos e violentos, sugerida por estudos mais antigos, é reducionista. O mais adequado para medir a possibilidade de dependência seria o que a Organização das Nações Unidas (ONU) define como “fatores de risco”, tanto individuais como sociais, como autoestima baixa, predisposição genética, dificuldade de interação social, ambiente familiar instável, falta de acesso a moradia, saúde e educação. “Até para drogas ‘pesadas’ existem usuários ocasionais. Por que alguns conseguem cheirar cocaína esporadicamente e outros são dependentes? O que basicamente os diferencia são outros fatores – se a pessoa tem algum transtorno psíquico associado, como depressão e ansiedade, ou se começa a usar o álcool e a cocaína para resolver problemas”, explica Xavier.

AMOSTRA DA “CRACOLÂNDIA”

Segundo pesquisa da Confederação Nacional de Municípios (CNM), divulgada em novembro de 2011, 98% das 4 mil cidades que ofereceram dados para o estudo enfrentam problemas com o consumo da droga, até mesmo as com menos de 20 mil habitantes. Pesquisadores do Instituto Nacional de Políticas Públicas de Álcool e Drogas (Inpad) e da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (Uniad) da Unifesp analisaram em dezembro de 2011 o padrão de consumo de frequentadores da “Cracolândia” – como é conhecida a região do centro de São Paulo onde traficantes e usuários comercializam a droga a qualquer hora do dia.

A maioria dos 170 entrevistados tornou-se usuária antes dos 18 anos. Um em cada dez faz sexo em troca de dinheiro para sustentar a dependência e 25% fumam mais de 20 pedras por dia, ou seja, passam grande parte do tempo entre os efeitos alucinatórios e o desejo incontrolável de consumir a substância novamente. Quase metade acredita que não conseguiria enfrentar o tratamento para parar de usar a droga sem internação. O risco é maior entre os mais jovens, com menos de 21 anos, pois o cérebro está em formação.

Em 1999, um dos autores da pesquisa, o psiquiatra Marcelo Ribeiro, relatou um estudo em que acompanhou 131 usuários da droga durante cinco anos. O dado mais expressivo foi a alta taxa de mortalidade, quase 20%. As causas mais frequentes são complicações decorrentes da infecção pelo vírus da aids e homicídio. “Há duas décadas, o crack se popularizou como uma opção à cocaína injetável diante do enorme crescimento do contágio de HIV por essa maneira. Hoje, sob o efeito da droga ou na ‘fissura’, o usuário fica mais vulnerável à violência e ao sexo desprotegido”, diz Ribeiro. A prostituição, aliás, é uma forma comum de financiar a dependência, principalmente entre as mulheres. Muitas delas mantêm relações sexuais completamente destituídas de poder para negociar o preço do programa e o sexo seguro – usam a droga para conseguir fazer sexo com os “clientes” e garantir meios de sobrevivência nas ruas. Dessa forma, expõem-se a doenças sexualmente transmissíveis e a gravidez indesejada para prover a dependência.

EQUIPE MULTIDISCIPLINAR

Em dezembro de 2011 o governo federal anunciou o “Plano de enfrentamento ao crack e outras drogas”, que prevê o investimento de R$ 4 bilhões no combate ao tráfico, no tratamento de usuários e em estratégias de prevenção até 2014. Uma das medidas previstas é a internação compulsória, ou seja, definida pelo médico e a Justiça e com tempo determinado. É comumente confundida com a involuntária, em que um profissional de saúde reconhece risco de morte no paciente e entra em consenso com seus parentes sobre a internação. No entanto, a eficácia da internação compulsória é baixa. “É malsucedida em 98% dos casos. A pessoa internada deixa de ter acesso à substância porque está em isolamento social. No entanto, no momento em que sai do hospital e depara com os mesmos problemas de antes, recai”, diz Xavier.

A maioria dos especialistas concorda que a estratégia mais eficiente seria a ação de uma equipe multidisciplinar, formada por agentes sociais e profissionais, preparados para atender dependentes químicos. Com esse trabalho, é possível identificar, caso a caso, problemas diretamente relacionados à busca pela droga. Muitas vezes os agentes mediam a relação do usuário com a família. Isso não significa, obviamente, que a intervenção médica não seja necessária para algumas pessoas. “Ela pode ser feita de forma ambulatorial, nos Centros de Atendimento Psicossocial (Caps). Nesse modelo, o dependente segue um tratamento sem deixar de viver em sociedade. Mas faltam profissionais bem treinados para atender a essa demanda”, diz o psiquiatra.

Em 2010 o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) avaliou o atendimento psiquiátrico de 230 Caps do estado. Constatou que faltam médicos, leitos de retaguarda e capacitação de pessoal – dos dez Caps de Álcool e Drogas analisados, apenas um tinha psiquiatra disponível.

VACINA DE COCAÍNA

Apesar de não “diagnosticarem” a dependência de substâncias psicoativas, os exames de neuroima-gem podem mostrar a extensão dos danos causados pela cocaína e seus derivados. Em pessoas que consomem a droga com frequência, há diminuição do fluxo sanguíneo em áreas relacionadas a comportamentos de dependência, como o córtex pré-frontal, envolvido no planejamento de ações e movimento, e os núcleos da base, associados à cognição, às emoções e ao aprendizado. Também há diminuição da integridade da substância branca na região do córtex frontal, relacionada por alguns estudos ao aumento da impulsividade nos usuários.

A intensidade dos efeitos de euforia é proporcional ao bloqueio da reabsorção de dopamina. Ele ainda é mais intenso no caso do crack, ou seja, da droga fumada, o que explica, em parte, a capacidade dessa versão da cocaína de causar maior dependência. Pesquisadores têm estudado o uso de medicamentos que agem sobre as proteínas transportadoras de dopamina, como o modafinil, para tentar reduzir o desejo incontrolável de usar a droga. Em um experimento com 62 dependentes, cientistas da Faculdade de Medicina da Universidade da Pensilvânia observaram que a taxa de abstinência foi maior entre os que usaram o remédio (prescrito em vários países para o tratamento de sintomas da narcolepsia) do que entre os que tomaram placebo.

Pesquisadores da Faculdade Médica Weill Cornell, em Nova York, desenvolveram em animais de laboratório uma vacina que estimula a produção de anticorpos capazes de se conectar e neutralizar as moléculas de cocaína antes que elas cheguem ao cérebro, impedindo a hiperatividade cerebral. A vacina combina o vírus da gripe comum com uma substância que imita a cocaína, de forma que o corpo “interpreta” a cocaína como algo a ser combatido. Ela vem sendo testada em humanos, mas ainda está longe de ser comercializada. O maior desafio é produzir um volume mínimo suficiente de anticorpos e em manter seu efeito ao longo do tempo – o bloqueio dura apenas 2 meses.

Diferentemente da heroína, não há drogas da mesma classe da cocaína que possam ser usadas como estratégia de redução de danos. Entretanto, um estudo observacional com 50 usuários de crack, conduzido por Xavier, apontou que 68% deles conseguiram resistir à abstinência com o uso de maconha. A descoberta mostra que estudar os canabinoides e como eles agem no cérebro pode ajudar a desenvolver tratamentos mais eficazes para a dependência química.

Especialistas concordam que a abordagem, não só para o crack como para outros psicoativos, deve considerar a presença de problemas psíquicos, principalmente depressão e ansiedade, identificadas em mais da metade dos casos. “Esses transtornos devem ser tratados junto à dependência física, como se existissem sozinhos”, diz Ribeiro.


Do site: www.mentecerebro.com.br

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