quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Monstros, animais e inumanos

Sofremos quando não conseguimos satisfazer as condições pelas quais queremos ser reconhecidos 

Christian Ingo Lenz Dunker
© Gonçalo Viana


Em seu último livro, Grande hotel abismo (Martins Fontes, 2012), Vladimir Safatle propõe uma nova teoria do reconhecimento baseada na reformulação das relações entre sujeito e indivíduo, tendo em vista modalidades de sofrimento.  Sofremos quando não conseguimos satisfazer as condições pelas quais queremos ser reconhecidos. E estes termos, em acordo com o individualismo moderno, definem o que chamamos de liberdade. Liberdade para escolher a lei pela qual nossa vida se realizará. Aqui começa a discussão mais interessante: também sofremos quando sentimos que somos reduzidos a apenas um indivíduo, em sua solidão e precariedade. Temos a liberdade para inventar nosso destino e nossa história, mas não a liberdade de viver para além ou para aquém da condição de indivíduo. Esta segunda forma de sofrimento é mais terrível porque requer estratégias de reconhecimento e consideração que ainda não são claras. Aparentemente, o problema seria de simples solução. Basta pensar que este mais além do indivíduo é o homem, a comunidade, a família ou grupo humano equivalente ao qual nos dedicamos e que nos representará no futuro, post mortem, por meio dos valores e obras que criamos e transmitimos.

Seja pela vertente universalista – para a qual o homem é o universal, que nos tira de nós mesmos (enquanto indivíduo particular) –, seja pela vertente particularista – segundo a qual o homem é o particular que confere a medida de cada um (enquanto indivíduo ideal) –, o homem é uma experiência finita e acabada. Sabemos o que é o homem, quais são seus limites, fronteiras e litorais. Um homem não é um animal, nem uma coisa, nem um monstro, mas é alguém que sofre quando não encontra mais seu nome, seu tempo ou seu lugar. Ocorre que quanto mais sabemos o que é um homem, mais segregamos, colonizamos e vilipendiamos homens em nome do Homem. Não seria então necessário renunciar à soberania do homem-indivíduo como valor e reconhecer que somos muito mais inumanos do que conseguimos admitir? Ou, como pensam os índios arawetés (estudados por Viveiros de Castro no sensacional Inconstância da alma selvagem, CosacNaify, 2006), animal, homem, monstro ou inumano são perspectivas possíveis e indeterminadas para cada um de nós. Também historicamente, desde algum tempo, nossos heróis passaram a ser figuras cada vez mais inumanas como Valdermort ou Naruto (a raposa de nove caudas). Criaturas semi-humanas como zumbis e mortos-vivos convivem com monstros híbridos como vampiros e lobishomens., Frankenstein e Wolverine vivem em meio a animais mutantes como Pokemons e Tele-Tubees.

Muita gente diz que estamos nos desumanizando pela falta de grandes heróis de face humana como Hamlet ou Fausto, Dom Quixote ou Don Juan. Penso, ao contrário, que não é porque nossa imagem humana parece cada vez menos humanoide que estejamos nos afastando daquilo que realmente somos. São nossos ideais que não encontram mais a matéria-prima à qual deveriam se aplicar. Em vez deles surgem médicos como House, justiceiros como Dexter, mulheres biônicas como Cindy Crawford, sem falar em grandes amores cinzentos. Talvez a forma mais simples de sintetizar o conceito lacaniano de objeto seja associando-o com o que em nós está irreconhecivelmente além de qualquer imagem de humanidade que possamos produzir: nossa “face coisa” sem essência, nossa monstruosidade animal, que nos torna tão inumanamente humanos. (08-11-2012).


Do site: www.mentecerebro.com.br

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