quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Um divã para dois


Trama de David Frankel toca questões delicadas e dolorosas da vida de casal e desperta identificações

© Divulgação

por Pedro L. Ribeiro De Santi

Uma mulher de 60 e poucos anos chega à sessão comigo e comenta ter visto o filme Um divã para dois, que a perturbou muito. Em análise há pouco tempo, o que mais a ocupa é a dor pelo fim do casamento, ocorrido há algum tempo. Depois de décadas de união, ela descobriu que o marido a traía regularmente. Por dois anos tentou superar a dor e recompor a relação, mas não foi possível. Mesmo que pudesse deixa de lado a traição, não a percepção de que não era mais amada.

Em especial, chamou sua atenção a cena na qual a mulher de um casal mergulhado em tédio anseia por recuperar sua vida amorosa e propõe um tratamento intensivo para eles em outra cidade. Ante a resistência do marido, ela toma uma atitude inédita e inesperada: anuncia que vai sozinha. Já no avião, triste, vê o marido que chega, acomoda a bagagem de mão e se senta a seu lado. Alívio. Esta foi a cena que impactou a analisanda: era por um gesto como este – a comprovação de que ainda havia investimento, interesse ou ao menos medo de perder a companheira – que minha paciente esperara ao longo dos dois anos da crise que passou em seu casamento. Esse gesto nunca veio – ao menos não num formato que ela pudesse reconhecer. Ela tomou a iniciativa de se separar e segue sofrendo e tentando elaborar a experiência.

Outro analisando, um homem de aproximadamente 30 anos, também se mostrou impressionado com o mesmo filme. Ele ficou arrasado ao reconhecer na trama os mesmos impasses que já encontra em seu casamento de apenas dois anos. Assim, como acontece tantas vezes, vamos tomando conhecimento de cenas e passagens de filmes apropriados pela narrativa das pessoas que atendemos – uma apropriação, aliás, com efeitos catárticos e, mesmo, produção eventual de insights.

O filme é extremamente eficaz em produzir efeitos de identificação nos espectadores. Inúmeras situações cotidianas envolvendo distanciamento, solidão, esperança e reencontro são encenadas por dois atores maduros, Meryl Streep e Tommy Lee Jones. As interpretações, delicadas, são marcadas por expressões faciais mínimas. É muito fácil se deixar capturar em um momento ou outro do filme. A classificação “comédia romântica” não chega a ser inexata, mas não permite supor o quanto ele toca questões delicadas e dolorosas da vida de casal. O humor e a solução feliz da narrativa parecem ser uma indulgência do roteiro. Sem algum alívio desta espécie, talvez os espectadores que se identificassem com a trama sairiam se arrastando e o filme acabaria sendo um fracasso comercial.

Num primeiro plano, assistimos um casal que dorme em quartos separados. O marido vaga hipnoticamente pela rotina e a mulher busca reencontrar a intimidade. Num segundo plano, já em terapia, surge a história da perspectiva do marido; quando a casca de resistência se abre, surge seu ressentimento antigo e a ênfase no quanto ele acredita ter tentado muito antes de ter desistido e se fechado.

Cada um a seu modo se sente solitário, injustiçado, infeliz. E atribui sua infelicidade ao outro. Ele desistiu e se deprimiu, considera que a vida de casado é “assim mesmo” depois de tanto tempo. Mas a mudança de atitude dela o move e vemos o casal tentando se reencontrar. Ora espontaneamente, ora de forma forçada e sem jeito.

O terapeuta é diretivo, parece ter saído de um livro de autoajuda e tem a cara de bobo do bom ator que o interpreta. Mesmo assim, ao longo do tratamento, de fato acaba por se reabrir uma via de contato e novas possibilidades de erotização do casal. Mas então vêm as sequências pesadas em seu realismo, como a tentativa de encenar uma noite romântica que acaba em fiasco.

Após a viagem e o momento de reencontro, o casal volta para casa. Imediatamente a rotina se reinstala, poderosa. Ele volta à indiferença e ela, a sofrer por isso. Se o filme acabasse por aí, provavelmente corresponderia a um número maior de desfechos vividos pelos espectadores. Mas ele fornece um final esperançoso e catártico. Ao longo dos créditos finais, descamba para o inverossímil. Ainda bem, senão seria duro sair da cadeira e voltar para casa. 

UM DIVÃ PARA DOIS. 100 min – Estados Unidos, 2012. Direção: David Frankel. Elenco: Meryl Streep, Tommy Lee Jones, Steve Carell, Elisabeth Shue, Jean Smart, Susan Misner, Marin Ireland, Ben Rappaport, Brett Rice, Daniel Flaherty, Kayla Ruhl, Jamie Christopher White. 

PEDRO L.RIBEIRO DE SANTI é psicanalista, doutor em psicologia, professor da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).

Do site: www.mentecerebro.com.br

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