Em 1943 nasceu no
Egito um bebê cheio de luz, que os caminhos incertos do destino
transformariam em brasileiro autêntico e patriarca da nossa etologia: o
formidável César Ades. As mentes que o interessavam eram de todo tipo.
Acreditava, como Konrad Lorenz (1903-1989), que a verdadeira ponte entre
a biologia e a psicologia é o estudo comparativo do comportamento
animal.
Quando ainda era pós-graduando, visitei na Universidade
de São Paulo (USP) a professora Dora Ventura, grande amiga e
colaboradora do César. Ela me recomendou ir conhecê-lo, pois seu
laboratório era perto. Seu nome já era uma lenda para mim; imaginei-o
extremamente ocupado. Bati na porta sem aviso, para saudá-lo apenas. Me
recebeu de braços abertos, mostrou aranhas e falou da língua dos bichos.
Seus olhos brilhavam em sintonia com o sorriso. Homem cheio de
demandas, tinha a magia de não parecer ocupado, pois era focado no
instante. Conversamos a tarde toda.
Histórias assim não
surpreendem os amigos do César, pois ele amava tanto os animais que
amava também o ser humano, o mais paradoxal de todos, capaz dos atos
mais extremos de amor e ódio. Ele demonstrava tal prazer no convívio com
os outros, uma gentileza tão profunda e espontânea com qualquer um que
cruzasse seu caminho, que alguém o suporia capaz de ver somente o lado
bom de tudo. Mas nãoera de forma alguma ingênuo, ao contrário, tinha
clareza aguda das mazelas da espécie. Mesmo assim nos amava, em nossa
perfeita imperfeição, maravilhado com a complexidade do nosso
comportamento.
Numa quinta-feira triste os caminhos incertos do
destino levaram nosso amigo embora. Ao receber a notícia, chorei por
horas a fio sem consolo. Nem sabia que gostava tanto dele assim. Em todo
o Brasil e em muitos outros países, tenho certeza de que muitos amigos
do César sentiram o mesmo desamparo, pois a elegância carinhosa do
mestre parecia imortal.
Mas a vida segue... Isso também é lei na
selva. Do alto da pirâmide do tempo, imagino o sorriso largo dele a nos
acalentar: “não chorem não, meus queridos; morrer é o destino certo de
todos os animais”.
Se vivo estivesse, gostaria que usássemos
nosso tempo para contemplar, aprender, extasiar e mudar para melhor. Que
discutíssemos por que a extração primata de petróleo começa a torturar
os litorais americanos, do golfo do México ao sudeste brasileiro. Que
duvidássemos da necessidade de fazer hidroelétricas na Amazônia, quando
não precisamos mais crescer e sim melhorar. Que entendêssemos que o
Brasil precisa, por natureza e cultura, liderar esse debate no mundo.
Que o progresso só vale a pena com amor. Mês que vem retomo o assunto,
as tarefas, a vida. Pode deixar, César. Viver é o destino certo de todos
os animais. Se vivo estivesse, César teria vindo a Natal em abril,
participar de banca de concurso docente. Quando lhe escrevi para
perguntar em que datas queria as passagens, desejou ficar uns dias a
mais, para conhecer pessoalmente meu filho, por quem sempre perguntava
desde que nasceu. Sabe como é, ele gostava de bichos... |
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| Sidarta Ribeiro é
neurobiólogo, diretor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (UFRN) e professor titular da UFRN. |
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