terça-feira, 5 de junho de 2012

O homem que amava os animais

Do site: www.mentecerebro.com.br, em 14 de maio de 2012

Pesquisador tinha clareza das mazelas humanas, mas permanecia maravilhado com a complexidade do comportamento
por Sidarta Ribeiro
Em 1943 nasceu no Egito um bebê cheio de luz, que os caminhos incertos do destino transformariam em brasileiro autêntico e patriarca da nossa etologia: o formidável César Ades. As mentes que o interessavam eram de todo tipo. Acreditava, como Konrad Lorenz (1903-1989), que a verdadeira ponte entre a biologia e a psicologia é o estudo comparativo do comportamento animal.

Quando ainda era pós-graduando, visitei na Universidade de São Paulo (USP) a professora Dora Ventura, grande amiga e colaboradora do César. Ela me recomendou ir conhecê-lo, pois seu laboratório era perto. Seu nome já era uma lenda para mim; imaginei-o extremamente ocupado. Bati na porta sem aviso, para saudá-lo apenas. Me recebeu de braços abertos, mostrou aranhas e falou da língua dos bichos. Seus olhos brilhavam em sintonia com o sorriso. Homem cheio de demandas, tinha a magia de não parecer ocupado, pois era focado no instante. Conversamos a tarde toda.

Histórias assim não surpreendem os amigos do César, pois ele amava tanto os animais que amava também o ser humano, o mais paradoxal de todos, capaz dos atos mais extremos de amor e ódio. Ele demonstrava tal prazer no convívio com os outros, uma gentileza tão profunda e espontânea com qualquer um que cruzasse seu caminho, que alguém o suporia capaz de ver somente o lado bom de tudo. Mas nãoera de forma alguma ingênuo, ao contrário, tinha clareza aguda das mazelas da espécie. Mesmo assim nos amava, em nossa perfeita imperfeição, maravilhado com a complexidade do nosso comportamento.

Numa quinta-feira triste os caminhos incertos do destino levaram nosso amigo embora. Ao receber a notícia, chorei por horas a fio sem consolo. Nem sabia que gostava tanto dele assim. Em todo o Brasil e em muitos outros países, tenho certeza de que muitos amigos do César sentiram o mesmo desamparo, pois a elegância carinhosa do mestre parecia imortal.

Mas a vida segue... Isso também é lei na selva. Do alto da pirâmide do tempo, imagino o sorriso largo dele a nos acalentar: “não chorem não, meus queridos; morrer é o destino certo de todos os animais”.

Se vivo estivesse, gostaria que usássemos nosso tempo para contemplar, aprender, extasiar e mudar para melhor. Que discutíssemos por que a extração primata de petróleo começa a torturar os litorais americanos, do golfo do México ao sudeste brasileiro. Que duvidássemos da necessidade de fazer hidroelétricas na Amazônia, quando não precisamos mais crescer e sim melhorar. Que entendêssemos que o Brasil precisa, por natureza e cultura, liderar esse debate no mundo. Que o progresso só vale a pena com amor. Mês que vem retomo o assunto, as tarefas, a vida. Pode deixar, César. Viver é o destino certo de todos os animais. Se vivo estivesse, César teria vindo a Natal em abril, participar de banca de concurso docente. Quando lhe escrevi para perguntar em que datas queria as passagens, desejou ficar uns dias a mais, para conhecer pessoalmente meu filho, por quem sempre perguntava desde que nasceu. Sabe como é, ele gostava de bichos...
Sidarta Ribeiro é neurobiólogo, diretor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e professor titular da UFRN.



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