quarta-feira, 7 de março de 2012

Fábrica de Heróis (1/3)

Do site: www.mentecerebro.com.br, em 14 de fevereiro de 2012

Qualquer um pode aprender a ser corajoso e realizar bravuras. Convencido disso, o psicólogo Philip Zimbardo desenvolveu um projeto para promover destemor e altruísmo nas escolas
 
©shutterstock

por giovanni Sabato

“Há um antigo provérbio que diz: 'A ocasião faz o ladrão'. No entanto, a oportunidade fez de mim outra coisa.” Assim Giorgio Perlasca explicou ao jornalista italiano Enrico Deaglio o que o levara a arriscar a vida para salvar 5 mil judeus húngaros dos nazistas em 1944. “Não acho que fui um herói. Afinal de contas, tive uma chance e a aproveitei.”

Como tantos outros protagonistas de atos heroicos que surpreenderam até a si mesmos com realizações em situações excepcionais, Perlasca não atribui seu gesto ao temperamento forte, à generosidade acentuada ou a uma profunda convicção ideológica. Vê sua attitude como a reação quase inevitável ao que vivia em dado momento: “O que você faria se estivesse em meu lugar?”

A pergunta é fundamental. Deaglio, autor do livro A banalidade do bem, sobre Perlasca, observa como os atos heróicos, na maioria das vezes, partem de pessoas comuns. Então por que a maioria de nós não os realiza? O título escolhido pelo jornalista remete claramente à obra A banalidade do mal, de Hannah Arendt, sobre o nazista Adolf Eichmann. No processo ocorrido em Israel há meio século, o organizador da máquina do Holocausto que havia condenado à morte milhões de judeus não parecia o fanático ou o sádico que se esperava, mas um pacato contador convencido de ter apenas cumprido seu dever.

Hannah Arendt concluía que qualquer um de nós, sob a pressão de circunstâncias anômalas, poderia cometer atrocidades semelhantes – uma intuição confirmada por 50 anos de pesquisas sobre a “psicologia do mal”. Há 40 anos, o psicólogo Stanley Milgram, professor e pesquisador da Universidade Yale, conduziu uma experiência polêmica, que demonstrou como pessoas comuns estariam dispostas a infligir choques com intensidade crescente – até chegar a voltagens indicadas como “perigosas” – em um suposto voluntário que gemia e agonizava. Na realidade tratava- se de um ator, mas o participante do estudo que o “torturava” não sabia disso, seu objetivo era obedecer ao pesquisador.

Em 1971, Philip Zimbardo, seu colega da Universidade Stanford, descobriu que, em uma prisão simulada, estudantes aos quais foram distribuídos aleatoriamente papéis de guardas ou de detentos, identificaram-se a tal ponto com seu personagem que cometiam atos de violência. A situação ficou tão grave que o pesquisador foi obrigado a suspender o experimento menos de uma semana depois de iniciado. Por meio século, estudos como esses investigaram como certos contextos podem determinar o comportamento de uma pessoa mais do que seus atributos individuais, até chegar, em casos extremos, a transformar seres humanos “normais” em “monstros”. Assim, foi desfeita a visão de que a pessoa que comete um ato isolado de crueldade é intrinsecamente má.

Os psicopatas existem, é óbvio, mas não são a regra e, sobretudo, não explicam fenômenos sociais graves como o Holocausto. Foram analisadas as forças que alimentam essas dinâmicas, como obediência acrítica à autoridade; conformismo e necessidade de integração; difusão da responsabilidade no grupo ou sua transferência para quem dá a ordem; preconceito e desumanização do outro. Também foram avaliados individualmente fatores que tornam essas forças mais ou menos poderosas, como tipo de autoridade, tamanho do grupo e presença de pelo menos um dissidente.

Enfim, a banalidade do mal foi estudada a fundo. O que até agora ainda não ficou claro é o outro lado dessa história: aquela minoria mais frequentemente escassa, mas nunca ausente, que não se deixa transformar em monstro. No experimento no qual Milgram obteve a obediência da maioria – quando pedia a colaboradores que infligissem choques em outras pessoas – 37 dos 40 participantes fizeram o que lhes era pedido. Mas 3 se recusaram. O próprio Zimbardo estava identificado com seu papel de diretor de prisão a ponto de não ver mais os horrores, sendo obrigado a interromper o experimento graças a uma pesquisadora que teve a coragem de enfrentá-lo e trazê-lo de volta à realidade.

Na vida real, na prisão iraquiana de Abu Ghraib, havia guardas que torturavam os detentos, mas também o sargento Joseph Darby, que, depois de muita hesitação, denunciou o ocorrido. Porém, ninguém nunca investigou sistematicamente como eles encontraram determinação para se rebelar. Também é preciso considerar que, contrariamente à ideia que se faz de um “monstro”, prevalece em relação ao herói a imagem de uma pessoa que, por coragem, força, bondade, honestidade, carisma e abnegação, se destaca dos mortais comuns.

“É uma visão aristocrática do heroísmo, que contrasta com a realidade”, observa Zimbardo. A ação heroica, porém, pode ser realizada por qualquer um que depare com uma situação extraordinária. Mas se todos têm dentro de si essa potencialidade, por que tão poucos a colocam em prática? Sobre esse dilema, há vários indícios, principalmente como subproduto dos estudos sobre o mal. Após 50 anos, chegou a hora de ultrapassar o limite definido: é preciso analisar a psicologia do bem e tirar proveito dela. Por isso, Zimbardo lançou, em São Francisco, o Heroic Imagination Project, uma organização sem fins lucrativos para promover o “heroísmo cotidiano”.

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