quarta-feira, 14 de março de 2012

Quando a Cuca vem pegar (2/2)

 (continuação)

A insônia secundária se manifesta depois dos 2 anos e irrompe subitamente, depois de uma organização normal do ciclo vigília-sono. Por volta dos 3 anos, sonhos de angústia podem desencadear despertares perturbadores ou até mesmo terroríficos que, segundo relatos das próprias crianças, têm como temática a separação e o abandono. Tomar distância das imagens de terror do sonho requer uma tolerância à angústia que é rara nos pequenos. A resposta mais comum é o medo da desorganização expresso pelo choro. No entanto, o surgimento dos sonhos de angústia é um evento considerado favorável dentro do desenvolvimento, pois sinaliza a aquisição de uma capacidade de elaboração que a criança está aprendendo a dominar.

Para Freud a transposição dos impulsos pulsionais para a cena onírica não é completa e permite que algo do material recalcado se expresse de modo desagradável. A angústia então nos faz despertar para escaparmos ao desconforto. Entretanto, Freud preservou sua hipótese do sonho como realização de desejos também para os pesadelos, sublinhando que as diferentes instâncias presentes em nosso psiquismo encontram-se em permanente conflito – o que satisfaz uma delas pode causar desprazer para outra. É o caso, por exemplo, dos sonhos de punição. Freud nunca se afastou da idéia de que os conteúdos infantis e recalcados fossem de ordem sexual.

O período compreendido entre 4 e 7 anos é bastante propenso a pesadelos. Resquícios da atividade diurna permanecem durante o sono, reanimando a pulsionalidade e desencadeando a elaboração onírica em que se destacam projeções de agressividade oral, com figuras de lobos e leões, por exemplo. Mais tarde surgem imagens de atividade de captura (como ladrões de crianças), ou fálica (com revólveres, facas e fuzis).
Durante o complexo de Édipo e na puberdade são comuns pesadelos sobre ameaças à vida dos pais – por exemplo, assassinatos dos quais os sonhadores são injustamente acusados. Embora sejam uma tentativa de elaboração onírica parcialmente fracassada, esses sonhos perturbadores indicam que a criança já dispõe de recursos para representar psiquicamente as angústias típicas desta etapa.

A criança temerá menos os pesadelos se souber que todo mundo os tem, sobretudo quando pequeno. Desenhar ou escrever sobre eles costuma ajudar a emprestar uma forma para sua angústia e, assim, dominá-la. Em vez de arriscar interpretações, os adultos devem ouvir e aceitar os juízos dos filhos sobre os próprios sonhos. Alguns pais sentem culpa ou medo quando as crianças sonham com cenas de morte, sem se dar conta de que é importante que os filhos considerem a ausência de pessoas que lhes são importantes (ainda que em manifestações do inconsciente) para desenvolver certa autonomia. O chamado terror noturno se diferencia do pesadelo, em primeiro lugar por não deixar recordação ao despertar. Mais intenso que o pesadelo, caracteriza-se como um ataque de angústia extrema e sem imagens em pleno sono, levando a criança a um estado de pavor no qual é incapaz de reconhecer seu entorno e de se lembrar da crise posteriormente. É um distúrbio típico do período edípico e raramente se manifesta antes do terceiro ano; sua incidência diminui próximo à segunda infância.

A crise é desencadeada bruscamente, uma ou duas horas após o adormecer, sendo precedida por momentos de agitação. Os pais são acordados pelos gritos da criança e a encontram sentada ou de pé na cama, pálida, com os olhos assustados, incomunicável, tentando se defender do perigo invisível. Taquicardia, sudorese e respiração ofegante completam o quadro. O final é igualmente abrupto. Raramente a crise se repete na mesma noite, porém geralmente retorna nas seguintes, por volta do mesmo horário. Tudo se passa como se o ataque de angústia substituísse o sonho que não pode ser elaborado, de modo muito semelhante às crises de pânico noturnas do adulto. O sono REM predomina a partir do meio da noite, período em que os pesadelos costumam se manifestar. A criança pode nesse caso lembrar-se das imagens assustadoras e, mesmo com dificuldade, retomá-las verbalmente para uma elaboração. Assim, se essa angústia costuma ser considerada uma vicissitude normal do desenvolvimento, o surgimento de terrores noturnos pode alertar pais ou terapeutas quanto a falhas mais graves da função simbólica e elaborativa dos sonhos, muitas vezes indicando problemas mais gerais no funcionamento psíquico.

O sonambulismo pode ser o herdeiro do terror noturno no período pós-edípico, na fase de latência: uma atividade motora automática (próxima à descarga de estímulos perturbadores) substitui a atividade onírica deficiente; mas embora o sono seja preservado não há lembranças ou restos de imagens para uma futura elaboração.
Como os distúrbios de sono em bebês e crianças pequenas geralmente se relacionam à qualidade de sua relação com os pais, o casal deve participar do tratamento. Essa abordagem é coerente com a perspectiva que considera o psiquismo _ inclusive o inconsciente _ inexistente no início da vida, sendo produto da cultura veiculada pelo entorno humano que acolhe o bebê. Portanto, sua fundação não seria mítica, mas real, fruto da relação com o semelhante.

Devido ao caráter pulsional do bebê, o período que se segue ao parto é mais suscetível a esse tipo de crise, mas também favorável a remanejamentos e superação de posturas inconscientes dos pais, que em outros momentos seriam inabaláveis. O conflito pode convidar à psicoterapia pessoas até então pouco inclinadas a essa abordagem, o que abre um potencial de mudanças efetivas favorecendo o desenvolvimento da criança.
A qualidade do vínculo estabelecido entre o terapeuta e os pais é fundamental. Quem trata crianças – médico ou analista _ deve assumir uma posição que possibilite a geração do pensamento e da fantasia dos pais sobre o filho. A acolhida benevolente e a suspensão de julgamentos morais dão lugar a uma ética na qual as dificuldades podem ser percebidas e remanejadas, ao passo que receber a angústia deles com solenidade excessiva só intensifica aspectos punitivos superegóicos do narcisismo em jogo.

Um dos papéis do terapeuta, nesses casos, é favorecer mecanismos da criança para que ela suporte esperar e postergar a necessidade da presença concreta dos pais, favorecendo o desenvolvimento de sua vida psíquica e fantasística. Para tanto, convém recorrer a técnicas que instaurem um jogo de elaborações em torno de noções complementares de presente e ausente, visível e invisível, mostrar e esconder. Qualquer suporte proposto pela criança ou pela mãe se presta a esse fim. Um exemplo disso são os jogos diante do espelho, nos quais a mãe ou o terapeuta aparece e desaparece. A idéia é ajudar a criança a reter uma imagem suficientemente estável que remeta à permanência do objeto amado e que, uma vez ausente, não seja sentido imediatamente como perdido, ativando o desamparo. O fato de o terapeuta brincar com a criança na presença dos pais pode incentivá-los a fazer o mesmo em casa. Aos poucos, eles começam a formular questões sobre seus afetos e interações com o filho. Mais tarde, o trabalho de verbalização afetiva e comportamental possibilita e valoriza o investimento da criança no mundo do pensamento. Por meio de materiais lúdicos e do contar histórias _ primeiro pelo terapeuta, depois pela própria criança _ são enfatizados aspectos que causam prazer ou medo. Trabalhar os aspectos fóbicos é o meio mais efetivo de povoar os momentos de solidão, principalmente os que irrompem no meio da noite.

O interesse da psicanálise pela psicopatologia do sono é recente e coincide com um momento em que os distúrbios do sono são um dos representantes do mal-estar da época atual. Embora tenha preterido o sono e se dedicado mais à questão do sonho, Freud considerou a dimensão subjetiva do primeiro e suas relações intrínsecas com o segundo – algo que a ciência começou a fazer apenas nas últimas décadas. Com base na formulação do “desejo de dormir”, ele ampliou a abordagem do sono para além da necessidade fisiológica e introduziu a idéia de que dormir seria uma retirada regeneradora da vida compartilhada, marcada por conflitos e cansaço.

Na interpretação dos sonhos, de 1900, Freud postulou que o sonho é o guardião do sono _ fórmula fundamental na construção da teoria psicanalítica. Nela o sono ocupa lugar central – como atividade vital que deve ser preservada –, e ao mesmo tempo marginal, já que a investigação dos mecanismos da formação dos sonhos foi privilegiada em detrimento do processo de adormecimento e suas pre-condições. Assim, o sono se caracteriza pela suspensão do interesse no mundo externo e pela inversão dos fluxos no aparelho psíquico (mecanismo que na psicanálise é denominado regressão). À noite, a inibição da motricidade favorece o escoamento das memórias infantis, reavivadas com tal intensidade que dão lugar a uma experiência alucinatória. O sonho seria uma forma de pensamento visual que substitui a lógica verbal da vigília.

O trabalho do sonho permite elaborar estímulos externos e internos que perturbam o sono, principalmente impulsos infantis que surgem com o rebaixamento da consciência e o relaxamento da censura. A elaboração onírica tem a função de “atender” tais impulsos por meio de uma deformação simbólica, representando-os no sonho como desejos realizados, numa satisfação alucinatória que tenta garantir a continuidade do sono. Como a censura encontra-se diminuída mas não ausente, a resistência do bebê a essas representações pode desencadear a angústia e mesmo o despertar. Vem daí a fórmula genérica segundo a qual “o sonho é uma realização de desejos”. A conciliação entre instâncias psíquicas em conflito por meio da representação simbólica se tornará modelo do sintoma neurótico e de toda formação do inconsciente.

Assim como o estado hipnótico é induzido pelo hipnotizador, o sono normal do adulto seria induzido por auto-sugestão. Com o crescimento, passamos a prescindir paulatinamente da presença “sugestiva” de alguém que nos adormeça, isto é, internalizamos a função que um dia foi desempenhada pela mãe. Na década de 10, Freud associou a retirada do interesse no mundo exterior implicada no sono a uma regressão mais profunda às origens da vida. Dessa forma, o desejo de dormir subentende uma regressão radical que ultrapassaria os limites do próprio eu, que se dissolve num estado próximo ao que Freud chamou narcisismo primário. O termo refere-se às primeiras relações fusionais da criança com a mãe, determinantes na constituição do amor próprio (narcisismo), do corpo erógeno e do “eu”. No entanto, Freud também se referiu a um narcisismo primário absoluto, cujo modelo é o estado intra-uterino de não-perturbação, silêncio e quietude. Didaticamente, é possível descrever a regressão do sonho como uma satisfação ligada ao ideal infantil de completude com a mãe, e o sono como uma satisfação regressiva análoga ao repouso absoluto no interior do ventre materno _ o grau zero de tensão.

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