terça-feira, 13 de março de 2012

Quando a Cuca vem pegar (1/2)

Do site: www.mentecerebro.com.br, em 16 de fevereiro de 2012

Nos primeiros anos, dificuldades para dormir são capazes de revelar problemas afetivos – e às vezes exigem intervenção

© Vinicius Tupinamba/shutterstock

Por Nayra Cesaro Penha Ganhito

Desde o nascimento, o momento de dormir é cercado por pequenos rituais preparatórios que nos protegem das perturbações externas e de nossas próprias ansiedades para podermos mergulhar no sono. É no aconchego dos braços da mãe, embalado pelo som da voz materna, sentindo o cheiro de seu corpo e as batidas de seu coração que o bebê encontra tranqüilidade para adormecer. No início da vida, as perturbações do sono estão intimamente relacionadas às vicissitudes da relação com esse outro amoroso que nos garante o alimento e o repouso imprescindíveis para a sobrevivência.

Dormir e comer são funções intimamente ligadas nos primeiros anos de vida: a fome nos faz despertar e a saciedade, adormecer. Mas esta relação transcende suas dimensões fisiológicas. Ao nutrir o filho, a mãe oferece também a qualidade de sua presença, que reflete desejos e fantasias que poderão “alimentar” ou não um sono tranqüilo. O sono paradoxal _ mais conhecido como REM _ é a fase em que ocorre a maioria dos sonhos nos adultos. Embora esse estágio seja detectável já em recém-nascidos, é preciso que a criança passe por um complexo desenvolvimento, cuja condição primária é a libidinização do sono, promovida pela mãe, para adquirir a capacidade de sonhar. Assim, embora seja uma ação solitária na qual o que se busca é o recolhimento, é no relacionamento com o outro que descobrimos o quanto dormir pode ser prazeroso – e seguro.

O sono, em especial o estágio REM, pode ser considerado uma tela para o sonho, isto é, uma base em branco sobre a qual se inscreveriam posteriormente as representações psíquicas. Trata-se de uma analogia com a superfície que recebe pinceladas de tinta. Mas, além de uma tela de projeção, o sono é também uma proteção, que filtra e faz anteparo àquilo que poderia inundar o psiquismo com excitações internas. Por isso se diz que, para o bebê, a mãe atua como um sistema de pára-excitação, que virá a ser paulatinamente substituído pelo funcionamento psíquico próprio da criança, tornando-a capaz de ficar e de dormir sozinha.

Antes de os sonhos advirem, a mãe é a primeira guardiã do sono. A instalação desse fundo psíquico básico relacionado ao sono dará lugar, mais tarde, aos sonhos da infância e à capacidade de fantasiar. Adormecer tranqüilamente nos braços da mãe é, portanto, uma experiência erótica fundante do desejo de dormir – e de sonhar. A capacidade de o bebê adormecer é considerada um protótipo arcaico de sua atividade psíquica e o ciclo vigília-sono seria um indicador sutil das primeiras fases do desenvolvimento, expressando em certa medida o funcionamento psíquico da criança.

O sono é um momento de separação. Ao fechar os olhos, o bebê renuncia à presença materna concreta, mas pode reencontrá-la nos sonhos. Para a psicossomática psicanalítica, os distúrbios precoces do sono resultam de falhas na progressiva instalação da capacidade de sonhar, transformando a hora de dormir em momentos de angústia, pesadelo e terror. A insônia infantil nos faz perguntar por que certas crianças parecem incapazes de internalizar o papel da mãe como guardiã do sono. Dois tipos de relação mãe-filho foram associados a situações em que o bebê ou a criança pequena não conseguem conciliar o sono.

No primeiro, há um investimento narcísico transbordante da mãe, com hiperestimulação e excitação constantes. A presença materna excessiva obtura o intervalo entre o psiquismo da mãe e o do bebê, intervalo que já foi chamado zona de adormecimento e constitui um espaço fundamental para que a criança possa retirar-se no sono e, mais tarde, elaborar suas próprias fantasias. No segundo tipo de relação, o interesse da mãe pelo bebê é insuficiente e deflagra uma série de privações fundamentais. A criança se vê compelida a buscar externamente a fonte de satisfação libidinal que deveria se instalar em seu mundo psíquico: o ciclo de choro, gritos e agitação cessa apenas quando a mãe a toma nos braços. O fato de o bebê só dormir embalado pela mãe indica sua incapacidade de internalizar a instância materna tranqüilizadora que lhe permitiria entregar-se ao sono com segurança.

Entre os distúrbios mais freqüentes que perturbam o sono dos recém-nascidos estão as cólicas idiopáticas (sem causa definida). Alguns especialistas as associam a um hiperinvestimento materno do tipo ansioso, hipótese corroborada pelo fato de o distúrbio não se manifestar em bebês que vivem em instituições. Ocorre tipicamente no primeiro trimestre de vida e desperta os bebês quando estão prestes a entrar no sono libidinal, relacionado ao estágio REM. Nesses momentos, a excitação invasora excede a capacidade de elaboração do psiquismo, e o choro ou gritos funcionam como descarga dessa tensão excessiva. A chupeta e o embalo nos braços da mãe são as principais intervenções usadas nessas situações. A sucção permite absorver a excitação por meio do prazer oral e o embalo envolve todo o corpo do bebê, favorecendo a regressão ao narcisismo primário (ver quadro na pág. 61). Ambas são técnicas motoras tranqüilizadoras usadas pela mãe, mas com o passar do tempo os sonhos tendem a substituir essas ações – pode-se dizer que o bebê deverá se tornar capaz de “alucinar” esse embalo. Do terceiro mês em diante, forma-se uma conexão entre a imagem do rosto materno e o prazer de contemplá-lo durante a amamentação. A organização desses primeiros traços de memória visual abre a possibilidade da formação de sonhos compostos de imagens e é nesse período que as cólicas geralmente cessam. Com ou sem cólicas, o sono agitado sempre indica maior intensidade da atividade psíquica implicada na elaboração da ansiedade.

Algumas fases do desenvolvimento são tipicamente conflituosas e se refletem no sono infantil, como ocorre por volta dos 8 meses, quando surge a angústia frente ao estranho. O bebê, que até então manifestava prazer na presença tanto dos pais como de desconhecidos, passa a demonstrar inquietação diante de rostos que não conhece. É o momento em que começa a discriminar seus objetos privilegiados, comportamento que revela a constituição da relação de objeto e marca uma etapa essencial do desenvolvimento.

A angústia do encontro com o estranho envolve operações psíquicas que equivalem a um protótipo da fobia, mecanismo de defesa que coloca o mal-estar sobre um objeto externo visando um apaziguamento interno. O conflito projetado no rosto desconhecido seria um deslocamento de impressões desagradáveis das experiências frustrantes no contato com a mãe. Em contrapartida, a visão da face familiar se associa à figura materna gratificante. Assim, a angústia associada a estranhos é um mecanismo organizador do pensamento e dos afetos. Depois do oitavo mês, o sono pode voltar a ser muito agitado entre 2 e 4 anos, período de grande intensificação da vida fantasística típica desse estágio do desenvolvimento libidinal. Nessa fase, os distúrbios do sono se relacionam à tentativa de elaboração de conflitos ligados a vivências da idade, como a experiência de mundo interno adquirida por meio do controle esfincteriano, a descoberta da diferença anatômica entre os sexos e a maior ambivalência entre amor e ódio nas relações edípicas.

De forma geral, a insônia infantil pode ser classificada em primária e secundária. A primeira se refere aos casos de bebês ou crianças pequenas que jamais chegaram a estabelecer ritmo adequado de sono e vigília. Já a secundária, mais comum, sobrevém mais ou menos bruscamente após um período em que a criança foi capaz de instalar um ciclo de sono normal; assim, é considerada um sintoma associado a alguma condição psíquica, física, ambiental ou farmacológica. Tanto na insônia primária como na secundária, porém, muitas vezes o bebê pode parecer menos afetado que seus pais, para os quais o distúrbio do filho pode chegar a ser extenuante e intolerável. Sua reverberação no futuro da criança é relativa, dependendo do contexto afetivo geral. Crises persistentes até o segundo ano costumam levar toda a família, ou pelo menos a mãe, à beira do esgotamento físico e psíquico. 


(continua amanhã)

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