domingo, 13 de maio de 2012

César Ades, um visionário da psicologia



Do site: www.mentecerebro.com.br, em 27 de abril de 2012

Professor insistia na importância da atitude humilde e curiosa porém de amplo alcance; era “unanimidade inteligente” entre seus pares
 
© Gonçalo Viana

Morreu em março um dos maiores pesquisadores em psicologia que o Brasil já conheceu. César Ades, nascido no Cairo, em 1943, contribuiu decisivamente para a formação de uma atitude científica nessa área no Brasil. Seus estudos etológicos sobre o comportamento animal são pioneiros, suas teses sobre o funcionamento da memória antecipam alguns dos grandes desenvolvimentos das neurociências, os trabalhos a respeito do “método” empregado pelas aranhas na construção de suas teias se tornaram uma referência na área.

Quando se fala em psicologia experimental – nome do departamento que César ajudou a constituir nos porões da alameda Glete, no centro, em São Paulo – geralmente se pensa na análise experimental do comportamento, com suas caixas de Skinner, métodos de condicionamento e de reforço. Contudo, há outra maneira de fazer ciência do comportamento, baseada na observação em ambiente natural, na perspectiva evolutiva da espécie, na leitura de nossa anatomia e fisiologia, inclusive em nossa compleição cerebral e genética, como uma história. É neste sentido que César nos ensinava a fazer ciência do Real. Sem ceder ao “metodologismo” – segundo o qual a ciência é apenas aquilo que se desenvolve por meio de métodos científicos e que tais métodos convergem para uma unidade normativa – a disciplina que esse professor nos impunha começava por uma atitude humilde e curiosa, porém, de amplo alcance prospectivo.

Foi essa atitude prática e ao mesmo tempo amorosa, marcada pelo rigor intransigente com as ideias, que levou César a se tornar uma “unanimidade inteligente” entre seus pares. Um exemplo concreto. Quando ainda estava no mestrado fui seu monitor em uma disciplina sobre pesquisa básica que envolvia estudos comparativos do funcionamento da memória em seres humanos e animais. Movido pelo espírito de abertura que ele estimulava propus, de forma provocativa, que estudássemos a Carta 52 de Sigmund Freud a Wilhelm Fliess, na qual este último desenvolvia uma teoria da memória baseada na transcrição articulada e temporal de sistemas compostos por diferentes tipos de signos.

Foi aí que César retrucou de forma amigável, mas não sem alguma ironia, que ele estava completamente de acordo, mas desde que se levasse em conta também a teoria intuitiva da memória, desenvolvida por Marcel Proust em Em busca do tempo perdido, obra da qual ele começou a citar longos trechos, de cabeça... em francês.

Mas a graça da história é que isso não se reduziu a uma troca retórica de gentilezas. Tive de “pagar minha língua” lendo Freud e Proust, junto com neuroetologia da memória. Um trabalho que, para minha absoluta surpresa, soube mais tarde, foi publicado. Ou seja, ele havia transformado o ringue narcísico das disputas insalubres por territórios falsamente delimitados em um rinque de patinação, no qual todos nós nos equilibrávamos para não cair, contando apenas com um tanto de saber e outro tanto de respeito pela dignidade do objeto.

Porém, a prova maior de que é exatamente desse tipo de cientista que precisamos, e não de mais tecnocientistas que saíram do ringue dos territórios para o ranking das avaliações, é que César Ades conseguiu passar na prova de ouro da atitude crítica que se espera da ciência: que ela resista ao poder constituído. E quando diretor do Instituto de Psicologia da USP ele conseguiu sair do cargo ainda amado e respeitado por todos com e contra os quais lutou. E presidiu o Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA) – homenagem justa a quem representava esta espécie em extinção do intelectual e cientista, público e universalista.

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