terça-feira, 25 de outubro de 2011

A cura pela palavra (6/7)



Da revista Mente & Cérebro, edição 225 - Outubro 2011


O psicanalista Christian Dunker, colaborador de Mente e Cérebro, fala sobre seu novo livro, Estrutura e constituição da clínica psicanalítica, em entrevista à editora Karnac Books, que lançou a obra na Inglaterra
[continuação]

10. O que acha da psicanálise hoje?

Como psicanalista, minha experiência com analisandos parece cada vez mais ligada às transformações culturais, políticas e sociais pelas quais estamos passando no Brasil. Fiz minha primeira análise em tempos de inflação. Tínhamos de acertar o preço da sessão a cada vez. A psicanálise era uma coisa que pertencia claramente a pessoas e instituições que estavam em sua propriedade soberana. Em 20 anos vi o Brasil se tornar uma potência psicanalítica mundial, talvez de quilate equivalente ao que era a Argentina naquela época. Ela definitivamente se instalou em hospitais gerais e de saúde mental, nos sistemas judiciário e educativo, na mídia, nas artes e nas universidades. A formação psicanalítica, antes considerada muito extensa e elitista, de repente ficou adaptada para uma época cuja ideologia demanda estudo e aperfeiçoamento permanente. O anterior cultivo de saberes sem vocação instrumental acabou atraindo as cabeças que não estavam lá muito fascinadas com uma educação para o mercado. Isso fez com que a psicanálise se disseminasse tanto entre intelectuais quanto entre cidadãos interessados em algo mais do que produção e reprodução. Resultado: tem gente usando a psicanálise para lidar com problemas de aculturação de indígenas na Amazônia; e tem gente usando a psicanálise no terceiro setor e nas empresas. Não digo que isso não seja admirável por si mesmo. Mas é possível que seja altamente problemático. Uma maneira de olhar para essa variedade é pensar que existem verdadeiras formas de psicanálise e outras que seriam cópias deformadas ou “piratas” do que deveriam ser. Ora, me ocorreu que essa é uma forma muito limitada, e no fundo disciplinar de resolver o problema. Vi gente extraindo efeitos psicanalíticos em situações precárias de formação e de exercício. Mas vi gente que tinha tudo para fazer o melhor e...Percebi a importância de pensar essa “biodiversidade” psicanalítica quando fui estudar na Inglaterra e deparei com uma inserção cultural diferente que se replicava em um entedimento clínico igualmente distinto. Lá a psicanálise tem uma posição meio periférica nos circuitos intelectuais e acadêmicos, ligada a grupos de resistência, e é considerada uma coisa “straightfoward” (ou seja, para pessoas sérias com grandes problemas). Quando dizia que meus pacientes frequentavam terreiros de umbanda, iam a cartomantes, tomavam antidepressivos, assim como faziam promessas para casar e bebiam chás naturalistas, o pessoal achava isso muito estranho. Se você acredita na psicanálise você acredita na ciência, então não pode sair do divã para a superstição. E assim analogamente em muitos outros lugares do mundo aos quais fui tendo acesso à cultura psicanalítica. A gente não imagina o que é a psicanálise em Taiwan, na China, na Eslovênia, na Turquia ou na África do Sul. Mas quando você vê que tudo muda na clínica quando está em uma sociedade em apartheid, ou islâmica, ou eslava pós-socialista, ou na boêmia irlandesa, começa a se perguntar o que é fazer psicanálise no Brasil.


Desde essa experiência pelo mundo psicanalítico, pareceu-me que esse tipo de covariância política da nossa prática exigia uma abordagem mais histórica e crítica da própria psicanálise. Menos definições nominais sobre quem você é, com quem você se formou, e mais consideração pelo que você efetivamente faz.
Há dois problemas principais no momento:

(1) A possibilidade de reabsorver as críticas feitas contra a psicanálise, na crítica social, por exemplo, de Adorno, Foucault, Deleuze, Agamben, Zizek, Badiou, para o interior da clínica psicanalítica. Isso seria crucial para transformar a psicanálise e aproximá-la do horizonte "da subjetividade de seu tempo" (como diz Lacan). Isso também significaria reintroduzir procedimentos clínicos no debate ético e filosófico, seja na epistemologia da prática, seja na teoria do sujeito ou nas ciências da linguagem. Hoje o debate com a psiquiatria e com as neurociências ainda está muito filtrado por interesses de mercado e estereótipos defensivos;

(2) É preciso confrontar certas práticas sociais que tendem a neutralizar a experiência psicanalítica seja pela sua redução à psicoterapia, seja pela padronização de sua formação. O financiamento de pesquisas está se burocratizando cada vez mais, a regulamentação estatal ou parasitária incide de tempos em tempos como uma ameaça, os sistemas securitário e trabalhista tentam de toda forma incluir a psicanálise em algum tipo de corporação. Anacronicamente resistimos: não queremos ser uma profissão. Nem queremos nos abrir para qualquer reforma de divisão social do trabalho, ao modo da decomposição de tarefas que vem destruindo a clínica médica. Somos ainda artesãos.

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