domingo, 11 de julho de 2010

A re-evolução dos bichos


A tradição humana de usar e abusar da vida, seja animal ou vegetal, levou o planeta à degradação, mas novos hábitos e avanços científicos podem mudar este quadro

Arca de Noé, óleo sobre tela, Edward Hicks, 1846, Museu de arte da Filadélfia

A busca da característica capaz de nos distinguir de outros animais é tipicamente humana. Assim como outros bichos, namoramos, procriamos, evitamos predadores e matamos para comer. A novidade dos últimos 10 mil anos foi a domesticação de animais e plantas, cujos usos vão muito além da simples fonte de alimento. Utilização implícita no mito da arca de Noé, verdadeiro banco de genes salvo do dilúvio para o bem do homem. Mas, quando Moisés desceu da montanha, o mandamento “não matarás” foi aplicado apenas aos membros da própria tribo. Todos os demais seres continuaram a representar mero recurso para exploração.

Há base científica para definir quais animais podem ser usados pelo homem e quais devem ser resguardados? O cérebro do rato pesa dois gramas, o do homem alcança 1,4 kg. No entanto, todas as principais estruturas cerebrais humanas estão presentes no roedor. Por algum tempo acreditou-se que nossa singularidade fosse o dom de adquirir linguagem. Nas últimas décadas, contudo, verificou-se que seres tão distintos quanto canários, morcegos e elefantes possuíam capacidade de aprendizado da comunicação. Propôs-se então que somos os únicos com habilidade para utilizar símbolos. Entretanto, observações etológicas demonstraram que a simbolização ocorre em populações selvagens de primatas, bem como em aves e mamíferos treinados por seres humanos.

Embora a consciência persista inexplicada, já não é possível sustentar que somos os únicos a tê-la. Mesmo assim, amamos e matamos a torto e a direito. Ratos usados em larga escala para pesquisas, superlotação de frangos abatidos em série, vacas sagradas na Índia mutiladas em farras ibéricas. Nossos melhores amigos não escapam da contradição. Cães servem de almofada para madames de bairros nobres, mas na Coreia viram churrasco. Se os gatos foram deuses egípcios, na comunidade da Mangueira, no Rio de Janeiro, servem de tamborim. A vida livre não garante melhor sorte. Magníficos leões, elefantes portentosos, colossais baleias e chimpanzés inteligentes são objeto de admiração, mas isso não os protege de serem destroçados por carne, osso ou veneno antimonotonia. Nada que surpreenda, pois assim tratamos nosso semelhante. O cárcere revela o quanto podemos negligenciar o bem-estar alheio. A escravidão e a tortura ainda são comuns em quase todo o planeta. Linchamentos e chacinas acompanham a espécie desde seu início. Que o diga Jesus Cristo.

O hábito de usar e abusar da vida asfixia Gaia, a representação mitológica da Terra. Já não se trata dos direitos de uma ou outra espécie, mas de todas. Somos bilhões a consumir sem saber de onde vem o produto e para onde vai o lixo. A saída do impasse não está no esquecimento de nosso passado carnívoro. Não há soluções simples. O vegetarianismo radical omite o prejuízo ambiental da monocultura. Somos o problema, mas também a solução. É preciso diminuir nossa população pelo controle da natalidade. É preciso instituir o comércio justo, em que todos os elementos da cadeia de produção sejam tratados adequadamente. É preciso desenvolver a carne de laboratório, saborosa, saudável e não oriunda de um ser vivo com sistema nervoso capaz de sofrer. A libertação de nossa sina assassina não passa


Da revista Mente & Cérebro n° 209, de junho/2010

ou www.mentecerebro.com.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário